
Genética na Comunidade
Epigenética na Síndrome de Klinefelter
Rafael Machado e Michelle Susin
Como o cromossomo X afeta também os outros cromossomos?
Embora muitos aspectos da síndrome venham da maior dose de genes presentes no cromossomo X extra que seus portadores apresentam, são observadas também modificações na expressão de genes localizados em outros cromossomos (Figura 1). Isso faz com que a Síndrome de Klinefelter seja um distúrbio genético extremamente complexo que impacta todo o genoma, sendo difícil encontrar um único gene que explique uma característica fenotípica, já que geralmente são causas multifatoriais.
%20.png)
Figura 1. Exemplos de genes diferencialmente expressos em cromossomos autossômicos na Síndrome de Klinefelter. A presença do cromossomo X extra em Klinefelter afeta também genes de cromossomos autossômicos, sendo mostrado na figura os cromossomos onde esses genes se encontram, se se apresentam hiper ou hipoexpressos, seus nomes, suas funções e possíveis consequências fenotípicas na síndrome. Essa influência do cromossomo X extra sobre os autossômicos é provavelmente mediada via mecanismos epigenéticos.
Um exemplo disso é o gene DOCK7 (Dedicator of citokinesis 7) que embora localizado no cromossomo 1, tem
uma maior expressão em homens portadores de SK. Esse gene codifica uma proteína que participa de sinalizações celulares (mecanismo molecular que permite comunicação entre células coordenando suas atividades e funções celulares) em vários tecidos. Acredita-se que a maior expressão desse gene possa estar relacionada com disfunções cognitivas encontradas em alguns portadores da síndrome, além de maior incidência de obesidade.
O gene POMC (Pró-opiomelanocortina), localizado no cromossomo 2, codifica uma molécula precursora de hormônios e neurotransmissores e quando diferencialmente expresso poderia levar a alterações endócrinas. Em Klinefelter foi observado que o POMC se apresenta menos expresso do que comparado com não portadores.
Outro exemplo de um gene localizado em um cromossomo autossômico tendo sua expressão aumentada pela presença de um cromossomo X extranumerário é o CLECL1 (C-Type Lectin Like 1), presente no cromossomo 12. Esse gene é responsável por uma proteína relacionada a interações entre células do sistema imunológico, e é teorizado que sua hiperexpressão, junto de vários outros genes desse sistema, tenha um papel na maior incidência de doenças autoimunes em SK.
No cromossomo 14, temos mais um exemplo dessa influência da síndrome de Klinefelter na expressão de genes em cromossomos autossômicos, o gene DACT1 (Disshevelld Binding Antagonist Of Beta Catenin 1) que na síndrome também é encontrado menos expresso que o esperado. Esse é outro gene também envolvido em sinalizações celulares importantes, principalmente no cérebro e em células musculares, onde está relacionado a sensibilidade a insulina. Dessa forma a hiperexpressão desse gene pode ser uma das razões para as disfunções cognitivas e resistência a insulina encontrada em alguns portadores.
Acredita-se que essa capacidade que o cromossomo X extranumerário tem de influenciar a expressão genica de outros cromossomos, seja mediada por mecanismos epigenéticos (Figura 1). Chamamos de epigenética o conjunto de alterações duradoras na expressão genica que não envolvem alterações na sequência de bases. Ou seja, são mudanças ao redor do DNA que tem a capacidade de modificar a expressão de uma região, permitindo ou impedindo a leitura da dessas regiões. A teoria de que esse seja o mecanismo responsáveis por essas mudanças na expressão genica é baseada em estudos que demonstram modificações epigenéticas diferentes em indivíduos que apresentam cromossomos X a mais, além do fato do próprio X conter diversos genes relacionados á esses mecanismos.
Essas mudanças ao redor do gene com capacidade de modificar a leitura de genes são principalmente 3: Modificações às proteínas histonas, gerando remodelamento da cromatina; Metilações na fita de DNA; Controle da expressão regulado por microRNAs.
Modificações às proteínas histonas e o remodelamento da cromatina
Assim como descrito no tópico de regulação transcricional, uma maneira de controlar a expressão é modificar o acesso dos fatores de transcrição aos seus sítios no DNA, isso é feito ao fechar ou abrir a cromatina, ou seja, através do remodelamento da cromatina. Neste processo ocorrem modificações nas caudas das histonas (as proteínas em que o DNA se enrola para formar a cromatina), essas modificações são as adições reversíveis de grupos acetil ou metil, modificando o grau de compactação da cromatina.
Grupos acetil são adicionados as histonas em um processo chamado de acetilação, gerando a abertura da cromatina e dessa maneira aumentando a expressão daquela região do DNA por permitir o acesso dos fatores de transcrição à fita de DNA. Esse processo é realizado por enzimas chamadas Acetiltransferases. Da mesma forma que a acetilação abre a cromatina, permitindo a expressão da região de DNA, a retirada desses grupos acetil, chamada de desacetilação, fecha a cromatina e impede a expressão do gene já que os fatores de transcrição e a RNA polimerase não terão acesso a região regulatória, sendo esse processo realizado pelas Deacetilases (Figura 2).
Já a adição de grupos metil às histonas (processo chamado de metilação), ao contrário da acetilação, está associada mais frequentemente ao fechamento da cromatina e consequentemente ao desligamento desses genes, sendo esse processo realizado pelas enzimas chamadas de Metiltransferases. Consequentemente a desmetilação (retirada dos grupos metil), realizadas pelas enzimas Desmetilases, abre a cromatina e dessa forma permite a expressão da região de DNA ao permitir que a transcrição aconteça (Figura 3).
%20.png)
Figura 2. Acetilação e Desacetilação de histonas. Ao adicionar grupos acetil (em verde) às proteínas histonas ocorre a abertura da cromatina (acetilação). Quando esses grupos acetil são retirados das histonas (desacetilação) ocorre o fechamento da cromatina.
.png)
Figura 3. Metilação e Desmetilação de histonas. Ao adicionar grupos metil (em vermelho) às proteínas histonas ocorre o fechamento da cromatina (metilação). Quando esses grupos metil são retirados das histonas (desmetilação) ocorre a abertura da cromatina.
No cromossomo X estão presentes genes que codificam enzimas relacionadas ao controle da expressão gênica através dessas modificações às proteínas histonas, consequentemente é esperado que na síndrome de Klinefelter ocorram alterações nesse mecanismo epigenético devido à presença de um cromossomo X extra. Um exemplo disso é o gene KDM6A (Lisina Desmetilase 6A) que codifica uma desmetilase de histonas e foi identificado como superexpresso em portadores da síndrome, o que pode ser explicado pelo fato do gene KDM6A escapar a inativação, dessa forma podendo apresentar-se em dose aumentada em SK. O aumento da produção dessa desmetilase foi relacionado com um aumento de gordura visceral e um menor lúmen arterial, podendo ser responsável então, por alterações observadas na síndrome como, maior incidência de diabetes e alterações vasculares, respectivamente. O KDM6A por ser uma histona desmetilase poderia retirar grupos metil de histonas em locais específicos no genoma resultando em uma maior expressão de genes específicos, que consequentemente levariam à maior quantidade de gordura visceral e o menor lúmen que são observados na síndrome de Klinefelter (Figura 4).
.png)
FIGURA 4. Possível mecanismo da influência de uma maior dose do gene KDM6A na síndrome de Klinefelter. O gene KDM6A, presente no cromossomo X, escapa inativação e dessa forma pode se apresentar mais expresso em portadores da síndrome de Klinefelter devido a presença de um cromossomo X extranumerário. O KDM6A por codificar uma histona desmetilase, se presente em maior dose geraria uma maior desmetilação de locais alvo no genoma e consequentemente uma maior expressão de genes alvo, que então poderiam ser os responsáveis pela alteração da quantidade de gordura visceral e do lúmen arterial que são observados em uma maior expressão de KDM6A.
Metilações a fita de DNA
Outro mecanismo epigenético (modifica a expressão genética sem envolver alterações na sequência de bases) é a metilação na fita de DNA, onde grupos metil são adicionados diretamente na dupla fita, mais especificamente na base nitrogenada citocina que vem acompanhada de uma guanina (CpGs). Essas metilações então podem ocorrer em todo o genoma, mas esses CpGs (regiões que podem ser metiladas) apresentam-se concentrados em regiões específicas do DNA, sendo esses locais geralmente localizados em regiões regulatórias e no começo de sequencias gênicas.
Essas modificações têm a capacidade de impedir que um gene seja expresso, pois quando a região regulatória desse gene se encontra metilado, os fatores de transcrição não conseguem se ligar a fita de DNA (Figura 5) e a região é sinalizada para o remodelamento da cromatina, no sentido de fechamento, para garantir que não haverá transcrição daquele local. Dessa maneira quando uma região do DNA é metilada o gene ali presente está desligado, pois não consegue mais ser lido e consequentemente gerar produto.
%20.png)
Figura 5. Metilação na fita de DNA como forma de controle da expressão genica. A) Função normal do gene, onde os fatores de transcrição ao se ligarem na região regulatória transcrevem o RNA. B) Quando ocorre a adição de grupos metila no DNA (o que ocorre principalmente da região regulatória e no início do gene), os fatores de transcrição não conseguem se ligar a região regulatória e assim a transcrição é impedida de acontecer naquela região, efetivamente “silenciado” o gene.
Em portadores da síndrome de Klinefelter foi observado um padrão de metilação diferente quando comparado a homens XY e mulheres XX, ou seja, genes que não estavam metilados em não portadores apresentaram-se metilados em homens XXY e vice-versa. O que os estudos mostraram foi principalmente uma hipermetilação global, isto significa que, mais regiões metiladas do que o esperado, isso em todo o genoma e apenas algumas regiões de hipometilação (menos metiladas do que o esperado).
Essas alterações são condizentes com o que vemos na síndrome de Turner (mulher X0), onde a ausência de um cromossomo X levou a um padrão de metilação contrário ao que é observado em Klinefelter, levantando-se a hipótese que a presença de um cromossomo sexual a mais leva há principalmente uma hipermetilação enquanto a falta gera uma hipometilação global. Logo, esse mecanismo provavelmente é um dos responsáveis pela influência do cromossomo X extranumerário em genes presentes em outros cromossomos, embora não se entenda ainda como essas variações de metilação ocorrem.
Controle da expressão regulado por microRNAs
Embora a maioria dos RNAs que foram citados até agora foram RNAs codificantes, ou seja, aqueles com capacidade de gerar proteína, principalmente RNAs mensageiros (RNAm), existem RNAs que sua função não é ser traduzido em proteína. Um exemplo disso são os microRNAs (miRNAs), pequenas sequencias com capacidade de se ligar a RNAs mensageiros e impedir que esses sejam traduzidos, consequentemente impedindo-os de gerar proteínas ou pelo menos diminuir consideravelmente a tradução. Os miRNAs são capazes de fazer isso pois, conseguem se ligar a outros filamentos de RNA por complementariedade, ou seja, possuem a sequência de bases complementar (ou parcialmente complementar) a alguns RNAm alvo. Então dessa forma a ligação do RNAm ao ribossomo é impedida ou dificultada e assim a produção de proteínas do gene em questão é inativada ou reduzida significantemente (Figura 6).
%20.png)
Figura 6. Funcionamento dos microRNAs em controlar a tradução de RNAs mensageiros. A) Tradução de um RNAm em proteína na ausência de miRNA. B) na presença do microRNAs esse pode se ligar a região 3’ não traduzida dos RNAs mensageiros por complementariedade total ou parcial levando a sua degradação ou inibição da tradução.
Estudos mostraram que nos homens portadores da síndrome de Klinefelter ocorre uma diminuição na expressão de pelo menos dois microRNAs, que aparentam estarem ligados a caraterísticas clínicas da síndrome, sendo mais um potencial mecanismo pelo qual o X extra modifica a expressão de vários outros genes em todo o genoma.
Esses microRNAs que foram observados superexpressos nem SK foram o MIR3687 e o MIR3648, ambos vindos do cromossomo 21. Foi observado que a diminuição da expressão desses RNA não codificantes estava possivelmente relacionado a maior incidência de doenças autoimunes, disfunções metabólicas e risco aumentado de câncer de mama vistos em portadores. Isso porque, provavelmente, esses miRNAs realizam a inibição da tradução de RNA mensageiros relacionados ao sistema imune, formação do tecido adiposo e câncer de mama, e devido à diminuição dessa inibição ocorreu uma maior produção dessas proteínas, podendo levar aos fenótipos citados (Figura 7).
%20.png)
Figura 7. Hipoexpressão dos miRNAs MIR3687 e MIR3648 e possíveis consequências na síndrome de Klinefelter. Por mecanismos ainda não conhecidos a presença do cromossomo X extranumerário na síndrome gera uma menor expressão dos miRNAs MIR3687 e MIR3648 transcritos a partir de genes do cromossomo 21. Essa menor expressão permite que RNAs mensageiros inibidos por esses miRNAs sejam mais traduzidos levando a maior produção de proteínas específicas que possam ser responsáveis por fenótipos observados nos portadores da síndrome.